terça-feira, 30 de outubro de 2012

Testemunho de um Maratonista - Paulo Gomes



Notas breves de um maratonista casual.

Acabar uma maratona é o objectivo a longo o prazo de qualquer corredor casual – leia-se alguém que corre pelo prazer de correr e/ou para manter a forma física sem ter objectivos competitivos. Esperei pelos 39 anos para realizar esse sonho. Gostei tanto que repeti este ano e, como diz Anthony Bourdain, “I’m hungry for more”.

Escrevo estas linhas ainda com as pernas ligeiramente doridas depois da Maratona do Porto de 2012 que corri ontem e o objectivo simples é recuperar até o próximo treino e registar a catadupa de emoções que representa esta prova para qualquer corredor.

Mas vamos por partes….

1 -  A preparação

A maratona mais que um momento é um longo processo. Os treinos que a antecedem são provavelmente a fase mais difícil e que exige alguma força de vontade e disciplina. 

No ano anterior tinham sido 2 meses intensos e solitários, com dois a três treinos semanais mais um treino longo ou prova no final da semana.

Este ano os No Tomorrow apareceram e em boa hora. A preparação em grupo é mais fácil e, sobretudo, mais divertida. Ao lado dos treinos solitários durante a semana, existiram treinos de conjunto que obrigavam o pessoal a levantar-se às 8.00h ao fim de semana e, ainda assim, aparecer com boa cara para mais uma corridinha.

E depois havia as “provas” para todos os gostos e feitios, com meias maratonas, trails, caminhadas, lunaruns, jantares  e até piqueniques à luz da lua no Parque da Cidade do Porto.

Estivemos juntos em quase todo o circuito de provas cá no norte, umas vezes mais, outras menos, mas sempre presentes e a correr como se não houvesse amanhã.

Tudo somado, desde Junho, no meu caso pessoal foram cerca de 1.150 km a correr nos mais diversos pisos e circunstâncias que incluíram um estágio de uma semana de corrida nas areias das Caraíbas, onde me estreei a treinar debaixo de uma mini tempestade tropical…

Foram esses momentos que tornaram a viagem tão ou mais importante que o destino: 28 de Outubro às 9.00 da manhã junto ao Palácio de Cristal (para quem não saiba hoje oficialmente designado Pavilhão Rosa Mota, a maratonista que a todos nos inspirou).

2 – A partida

E no dia marcado lá estávamos, 4 para correr a maratona e mais de uma dezena de elementos nas outras provas ou para a tarefa fundamental de apoiar quem ia correr.

Como se diz no Porto, estava um frio do caraças (não é bem esta a expressão…) e amaldiçoei várias vezes os senhores da meteorologia que tinham prometido toda a semana vento fraco e deram-nos na realidade vento forte, frio e cortante.

 Um veterano na prova (com UMA maratona no curriculum…) não se deixa abalar com estes contratempos, até por ter de dar o exemplo de confiança total aos seus companheiros de corrida, um quase estreante (Pedro Silva Pereira) e duas corajosas debutantes absolutas nestas lides (Rute Pinto e Érica Reis).

E também não se emociona quando entra na pequena multidão de corredores que se reúne antes da linha de partida, sente a adrenalina no ar, a temperatura subitamente a aumentar e o frio a desaparecer, ouve os desejos de boa sorte em vários idiomas ou com abraço final aos 3 companheiros de jornada.

Muito menos quando se ouve o tiro de partida e a sorte está lançada, com os músculos a suplicarem por movimento para queimarem os dois almoços de massa do dia anterior, o pequeno-almoço reforçado e o descanso obrigatório a que foram submetidos nas últimas horas quando só queriam começar a correr.

Não, de forma alguma, aquela humidade que subitamente lhe surge nos olhos é provocada pelo frio e um corredor experiente leva sempre óculos escuros para que não possa conduzir a más interpretações…
Mas que é intenso, é… mesmo à segunda vez!  

3 – A festa

Depois dos longos 100 m. aos saltinhos até à linha de partida, estamos finalmente a correr! É a fase da festa em que está toda a gente com força, boa disposição e os níveis de adrenalina no máximo.

Ouvem-se piadas e conversas por todo o lado, faz-se pose para as fotos dos familiares, amigos e companheiros de equipa que se posicionam nas bermas e, pelo meio, também se aquecem os músculos e vê-se se está tudo a funcionar normalmente. Uma dor nesta altura ou são nervos ou muito mau sinal…

O percurso ajuda ao ambiente descontraído por ser sempre a descer nos primeiros quilómetros até ao Castelo do Queijo, com o vento forte pelas costas a dar um belo empurrão e os muitos participantes dos 15 Km a darem volume ao pelotão e a acelerarem por arrastamento a corrida.

Uma grande novidade este ano era o facto de não correr sozinho por ter tido ao meu lado durante mais de 30 km o meu companheiro de equipa Pedro Silva Pereira.

A experiência, comparada com a corrida de concentração total e solitária do ano anterior, foi claramente mais gratificante. A primeira metade da corrida (enquanto ainda havia folego para falarmos e corrermos ao mesmo tempo) passou num instante e permitiu aumentar a resistência psicológica para o que ainda estava para vir.

Apesar do clima de festa, o objectivo pessoal estava bem definido: primeiro, chegar ao fim (objectivo fundamental em todas as provas mas que ganha especial significado na maratona) e depois bater o recorde pessoal de 3:30:31 estabelecido na mesma prova o ano passado.

Estava confiante que tal seria possível e mais convencido fiquei quando o balão verde dos pace-makers das 3:30 h (não imaginam a quantidade de gente que faz estas corridas a olhar para o balão) ficou rapidamente para trás ainda na Avenida da Boavista (o ano passado só o apanhei aos 39 km.). Aos 11 km, junto ao Porto de Leixões já cheirávamos o balão amarelo das 3.15 h.

A emoção mandava que fossemos sofregamente atrás dele até por ser transportado pela nossa recente “amiga” Manuela Machado (sim, a grande maratonista) com quem tínhamos combinado, há uma semana, fazer a corrida no pressuposto de que iria com o das 3:30 h..

Embora fizéssemos uma vaga promessa à Manuela antes do início da prova de que se calhar ainda a apanhávamos, a prudência mandava manter o ritmo e não entrar em loucuras porque a corrida estava para começar…

4 – A corrida

Esta começou à séria quando os pelotões se separaram no Castelo do Queijo aos 14 km. Subitamente a massa contínua de atletas desaparece, formam-se pequenos pelotões espaçados e começa-se a sentir a força do vento já na Avenida Brasil.

O balão amarelo distanciou-se um pouco e o verde nem vê-lo, portanto tudo normal e sob controlo. Ao virarmos no Castelo da Foz para a parte da marginal do Rio Douro, percebeu-se que até à Ponte D. Luís ia ser o troço mais difícil. 

O vento fortíssimo contrário dificulta a progressão e a respiração e começamos a ser ultrapassados pelos primeiros atletas vindos detrás – até aí tinha sido sempre a abrir…

Até ao 21 Km era território conhecido e que fazemos habitualmente dezenas de vezes por ano sem dificuldade, agora entravamos na verdadeira maratona.

E nada melhor que começar a recuperar as forças a caminho da Afurada quando o vento volta a ficar pelas costas e aguardar os aplausos das gentes dessa terra que nunca poupam em apoio aos atletas que por lá passam.

E, já agora, um “força” muito especial da Manuela Machado que passou em sentido contrário e nos reconheceu que bem precisávamos para o difícil retorno para a Ponte D. Luis. O balão amarelo já ia então a uma distância grande e o vento não abrandava aumentando o desgaste natural de quem tinha percorrido 30 Km..

Ainda na parte boa, tínhamos passado pela Rute e pela Érica que seguiam a bom ritmo e com ar de que estavam prontas a despachar a primeira maratona. O nosso agente infiltrado Paulo Graça, aguardava nervosamente a Érica na Afurada para a acompanhar clandestinamente nos últimos 15 km.

Vi o balão amarelo pela última vez a entrar no Túnel da Ribeira quando ainda saía da ponte em direcção ao Freixo. Percebi então que as 3.15 h eram um objectivo inatingível e que o melhor a fazer seria tentar aproximar-me ao máximo desse tempo.

Finalmente atingia o extremo em direcção ao Freixo e fazia o retorno final rumo ao Parque da Cidade. Só a ideia de não ter mais vento contrário até à subida da Boavista teve o efeito psicológico do Red Bull: deu-me asas. Arranquei rumo aos 35 km na Arrábida para uma parte final de prova sozinho depois de ver se estava tudo bem com o Pedro.  

5 – O muro

Está normalmente aos 35 Km. e não me lembro de ter batido nele no ano passado. Este ano estava imediatamente antes da Ponte da Arrábida e, não esbarrando, tive de dar um saltinho e aumentar ligeiramente o esforço.

Foi nesta zona que apareceram mais caras conhecidas, primeiro o Nuno Azevedo, repetente e o meu único apoiante o ano passado, e o Carlos Dias a fazer a sua fantástica foto-reportagem e a dar a força para a fase final.
Apesar de a partir daí sentir algum cansaço muscular, seguia a um ritmo confortável e sem qualquer tipo de dor. A certeza de chegar ao final era quase absoluta, embora a partir daqui os quilómetros começarem a passar mais devagar.

E no entanto, confirmei depois, estava a seguir a um ritmo perfeitamente estável desde os 30km..

Para combater este cansaço psicológico socorri-me dos conselhos do Mestre Dean Karnazes (o homem afinal correu 50 maratonas em 50 dias). Primeiro segui durante vários quilómetros imediatamente atrás de um atleta de cerca de 1.90 m que corria sensivelmente ao meu ritmo e me serviu de pacemaker à falta de balões à vista.

Depois já na Avenida Brasil, cansei-me de ter a visão completamente tapada por uma camisola azul celeste e deixei-o para trás (as corridas são mesmo assim) e passei a utilizar os pontos de referência do percurso ou o atleta que seguia à frente. O último, a estátua no centro da rotunda do Castelo do Queijo (tenho que saber quem é…) parecia muito mais longe que habitualmente nos muitos treinos que lá faço.

E chegava o troço final da Avenida da Boavista.

6 – A explosão

Quando efectuava a curva vejo as camisolas do No Tomorrow vestidas pela Paula e o Ricardo, logo seguidos da Susana, da Alberta, da Catarina, da Otília e espero não me estar esquecer de ninguém mas ia a correr muito e há muito tempo.

Eram muitos e bons e com o seu apoio incondicional tiveram aquele efeito novo de fazer desaparecer o cansaço e acelerar ao lado do Ricardo como se estivesse a começar a corrida. Lembrei-me que não era assim quando vi a placa dos 41 Km e já não tinha o Ricardo ao meu lado e voltei-me a esquecer quando, surpresa, me aparece o Milo para me acompanhar os últimos 500 m. (seriam 500? A partir daqui foi tudo muito rápido).

De seguida o túnel de público e a já conhecida recta final para atingir o objectivo com 3:21:32. Desta vez não chorei. Fiquei só muito feliz.

7 – O final

De medalha ao peito e com a merecida cerveja na mão, encontrei quase de imediato a Manuela Machado e disse-lhe que este ano me fugiu por 6 minutos, mas para o ano não me escapa.

A corrida só acabou quando chegou o Pedro (que bateu o balão verde das 3:30 à primeira!), a  Rute (que ficou em 20.º no seu escalão) e a Érica que ainda consegui acompanhar na recta final para retribuir, apenas parcialmente é certo, o que me tinham dado a mim.

Foram momentos de festa (acabou como começou) em que todo o grupo se juntou e celebrou o facto de mais uma vez todos terem atingido os seus objectivos e chegado ao fim nas provas em que participaram (até na caminhada).

A Audrey Pais encarregou-se das filmagens, o João Pinto, a Paula Lopes, o Carlos Dias e a Alberta Gonçalves das fotografias para registarem momentos únicos que certamente ficarão gravados para todo o sempre na nossa memória e nos nossos corações.

Fotos de família, Quenianos voadores, abraços sentidos, atletas a fazer pose e palhaçadas, fotos de medalhados, flash interviews, tivemos direito a tudo. 

Dizem que não há maratona como a primeira, eu gostei mais da segunda… porquê?
Porque não corri sozinho!
Obrigado a todos o que o tornaram possível!  

8 –Epílogo

Pensavam que terminava já…  ainda não.
As notas breves de uma maratona são como essa corrida, um bocado longas.
Como puderam ver acima é difícil resumir em poucas palavras tudo o que se passa durante as 3, 4 ou até 5 horas que dura a prova. Para os Quenianos talvez seja mais fácil – comecei a correr, corri, corri, corri e ganhei – já para um corredor casual acontecem muitas coisas, sentem-se muitas emoções e fica-se com histórias para guardar e contar.

Provavelmente não chegam para escrever um livro, darão quando muito para escrever umas notas breves mais ou menos longas.

É uma experiência que recomendo a todos que gostam de correr e que está ao alcance de todo o corredor casual, como o provam os quatro elementos dos No Tomorrow e boa parte dos 1680 atletas que terminaram a Maratona do Porto.

Sem treinador, sem esquemas rígidos de treino, apenas com alguma disciplina, força de vontade, muita determinação e uma pequenina, mesmo muito pequenina, dose de loucura.
Quanto à forma de o fazer, é obviamente possível fazê-lo sozinho, como aconteceu durante os cerca de 7 anos que ando nesta lides das corridas e o ano passado na preparação da maratona. Acaba-se a corrida, pega-se no saco de oferta e vai-se para casa.

Todavia, para dar outra dimensão a esta experiência inesquecível, nada como a dinâmica de grupo com quem podemos partilhar a alegria do objectivo conseguido ou obter o conforto quando a coisa corre menos bem. É mais fácil, é mais completo e temos alguém a quem saudar no final.

Espero que no próximo ano esta história tenha muito mais que 4 personagens principais, ainda que se sacrifique a qualidade da reportagem e da equipa de apoio.

NO TOMORROW RUNNING TEAM comecem a treinar e a correr como se não houvesse amanhã que a grande Manuela Machado conta connosco junto ao balão amarelo.

E eu gosto de cumprir as minhas promessas! 

Porto, 29 de Outubro de 2012

Paulo Gomes

Dorsal 1923 da Maratona do Porto


P.S. O No Tomorrow Running Team não é um grupo fechado. Foi criado por um grupo de amigos que resolveram começar a correr em conjunto.
Tem regras muito simples:
  • Cada um vai aos eventos que quer;
  • Cada um trata e suporta a sua despesa de inscrição, deslocação, etc. (normalmente com partilha de carros); 
  • O clube não dá nada a ninguém a não ser a boa disposição, o companheirismo e um grupo divertido para fazer as corridas em conjunto.
Se as regras te agradam, não queres correr sozinho e estás disposto a arriscar ter emoções semelhantes às descritas no texto, contacta-nos.

3 comentários:

  1. "Dizem que não há maratona como a primeira, eu gostei mais da segunda… porquê?
    Porque não corri sozinho!
    Obrigado a todos o que o tornaram possível!"

    Nas curtas, tão curtas corridas que faço, 10Km (fiz uma de 15km) nunca uma única vez alguém da minha família me perguntou sequer como correu a prova, quanto mais apoiarem-me na meta... É óbvio que homenageia e priveligia as pessoas que tem e que o apoiam e o meu comentário é só para as estimar ainda mais um bocadinho mais (se possível), porque há muitas pessoas, que não têm essa sorte. que correm sozinhos, que choram enquanto correm e que no fim foi só mais uma corrida, nunca seremos suficientemente bons para "os nossos", pode ser um dia, se correr uma maratona.
    Fantástica descrição, muita coragem e empenho, óptimo tempo e pena que esse grupo não seja de Lisboa!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado pelas palavras que nos deixou.

      O seu comentário tocou todo o grupo e deixou-nos com vontade de ir até Lisboa para uma corrida em conjunto.

      E não desista de correr,mesmo sózinho, porque vale pena, como valeu para mim durante sete anos.

      Somos cada vez mais a correr e poderá em breve encontrar em Lisboa um grupo com quem possa partilhar a experiência.

      Fica aqui, apenas a título de exemplo, o link do Facebook do Sedentário a Maratonista onde é referido, no comentário a esta crónica, um grupo que irá realizar treinos nessa zona.

      http://www.facebook.com/?ref=logo#!/DeSedentarioaMaratonista?fref=ts

      Como poderá verificar, não é o único à procura de companhia e de um grupo para correr!

      Força, bons treinos e melhores corridas!

      Paulo Gomes

      Eliminar
    2. P.S.: Dois elementos dos No Tomorrow vão estar presentes na Maratona de Lisboa dia 9 de Dezembro. Não o desafio ainda para correr a maratona mas se quiser aparecer teremos todo o gosto em conhecê-lo pessoalmente.

      Eliminar