Notas breves de um maratonista
casual.
Acabar uma maratona é o objectivo
a longo o prazo de qualquer corredor casual – leia-se alguém que corre pelo
prazer de correr e/ou para manter a forma física sem ter objectivos
competitivos. Esperei pelos 39 anos para realizar esse sonho. Gostei tanto que
repeti este ano e, como diz Anthony Bourdain, “I’m hungry for more”.
Escrevo estas linhas ainda com as
pernas ligeiramente doridas depois da Maratona do Porto de 2012 que corri ontem
e o objectivo simples é recuperar até o próximo treino e registar a catadupa de
emoções que representa esta prova para qualquer corredor.
Mas vamos por partes….
1 - A preparação
A maratona mais que um momento é
um longo processo. Os treinos que a antecedem são provavelmente a fase mais
difícil e que exige alguma força de vontade e disciplina.
No ano anterior tinham sido 2
meses intensos e solitários, com dois a três treinos semanais mais um treino
longo ou prova no final da semana.
Este ano os No Tomorrow apareceram
e em boa hora. A preparação em grupo é mais fácil e, sobretudo, mais divertida.
Ao lado dos treinos solitários durante a semana, existiram treinos de conjunto
que obrigavam o pessoal a levantar-se às 8.00h ao fim de semana e, ainda assim,
aparecer com boa cara para mais uma corridinha.
E depois havia as “provas” para
todos os gostos e feitios, com meias maratonas, trails, caminhadas, lunaruns,
jantares e até piqueniques à luz da lua
no Parque da Cidade do Porto.
Estivemos juntos em quase todo o
circuito de provas cá no norte, umas vezes mais, outras menos, mas sempre
presentes e a correr como se não houvesse amanhã.
Tudo somado, desde Junho, no meu
caso pessoal foram cerca de 1.150 km a correr nos mais diversos pisos e
circunstâncias que incluíram um estágio de uma semana de corrida nas areias das
Caraíbas, onde me estreei a treinar debaixo de uma mini tempestade tropical…
Foram esses momentos que tornaram
a viagem tão ou mais importante que o destino: 28 de Outubro às 9.00 da manhã
junto ao Palácio de Cristal (para quem não saiba hoje oficialmente designado
Pavilhão Rosa Mota, a maratonista que a todos nos inspirou).
2 – A partida
E no dia marcado lá estávamos, 4 para
correr a maratona e mais de uma dezena de elementos nas outras provas ou para a
tarefa fundamental de apoiar quem ia correr.
Como se diz no Porto, estava um
frio do caraças (não é bem esta a expressão…) e amaldiçoei várias vezes os
senhores da meteorologia que tinham prometido toda a semana vento fraco e
deram-nos na realidade vento forte, frio e cortante.
Um veterano na prova (com UMA maratona no
curriculum…) não se deixa abalar com estes contratempos, até por ter de dar o
exemplo de confiança total aos seus companheiros de corrida, um quase estreante
(Pedro Silva Pereira) e duas corajosas debutantes absolutas nestas lides (Rute
Pinto e Érica Reis).
E também não se emociona quando
entra na pequena multidão de corredores que se reúne antes da linha de partida,
sente a adrenalina no ar, a temperatura subitamente a aumentar e o frio a desaparecer,
ouve os desejos de boa sorte em vários idiomas ou com abraço final aos 3
companheiros de jornada.
Muito menos quando se ouve o tiro
de partida e a sorte está lançada, com os músculos a suplicarem por movimento
para queimarem os dois almoços de massa do dia anterior, o pequeno-almoço
reforçado e o descanso obrigatório a que foram submetidos nas últimas horas
quando só queriam começar a correr.
Não, de forma alguma, aquela
humidade que subitamente lhe surge nos olhos é provocada pelo frio e um
corredor experiente leva sempre óculos escuros para que não possa conduzir a
más interpretações…
Mas que é intenso, é… mesmo à
segunda vez!
3 – A festa
Depois dos longos 100 m. aos
saltinhos até à linha de partida, estamos finalmente a correr! É a fase da
festa em que está toda a gente com força, boa disposição e os níveis de
adrenalina no máximo.
Ouvem-se piadas e conversas por
todo o lado, faz-se pose para as fotos dos familiares, amigos e companheiros de
equipa que se posicionam nas bermas e, pelo meio, também se aquecem os músculos
e vê-se se está tudo a funcionar normalmente. Uma dor nesta altura ou são
nervos ou muito mau sinal…
O percurso ajuda ao ambiente
descontraído por ser sempre a descer nos primeiros quilómetros até ao Castelo
do Queijo, com o vento forte pelas costas a dar um belo empurrão e os muitos
participantes dos 15 Km a darem volume ao pelotão e a acelerarem por
arrastamento a corrida.
Uma grande novidade este ano era
o facto de não correr sozinho por ter tido ao meu lado durante mais de 30 km o
meu companheiro de equipa Pedro Silva Pereira.
A experiência, comparada com a
corrida de concentração total e solitária do ano anterior, foi claramente mais
gratificante. A primeira metade da corrida (enquanto ainda havia folego para falarmos
e corrermos ao mesmo tempo) passou num instante e permitiu aumentar a
resistência psicológica para o que ainda estava para vir.
Apesar do clima de festa, o
objectivo pessoal estava bem definido: primeiro, chegar ao fim (objectivo
fundamental em todas as provas mas que ganha especial significado na maratona)
e depois bater o recorde pessoal de 3:30:31 estabelecido na mesma prova o ano
passado.
Estava confiante que tal seria
possível e mais convencido fiquei quando o balão verde dos pace-makers das 3:30
h (não imaginam a quantidade de gente que faz estas corridas a olhar para o
balão) ficou rapidamente para trás ainda na Avenida da Boavista (o ano passado
só o apanhei aos 39 km.). Aos 11 km, junto ao Porto de Leixões já cheirávamos o
balão amarelo das 3.15 h.
A emoção mandava que fossemos
sofregamente atrás dele até por ser transportado pela nossa recente “amiga”
Manuela Machado (sim, a grande maratonista) com quem tínhamos combinado, há uma
semana, fazer a corrida no pressuposto de que iria com o das 3:30 h..
Embora fizéssemos uma vaga
promessa à Manuela antes do início da prova de que se calhar ainda a
apanhávamos, a prudência mandava manter o ritmo e não entrar em loucuras porque
a corrida estava para começar…
4 – A corrida
Esta começou à séria quando os
pelotões se separaram no Castelo do Queijo aos 14 km. Subitamente a massa contínua
de atletas desaparece, formam-se pequenos pelotões espaçados e começa-se a
sentir a força do vento já na Avenida Brasil.
O balão amarelo distanciou-se um
pouco e o verde nem vê-lo, portanto tudo normal e sob controlo. Ao virarmos no
Castelo da Foz para a parte da marginal do Rio Douro, percebeu-se que até à
Ponte D. Luís ia ser o troço mais difícil.
O vento fortíssimo contrário
dificulta a progressão e a respiração e começamos a ser ultrapassados pelos
primeiros atletas vindos detrás – até aí tinha sido sempre a abrir…
Até ao 21 Km era território
conhecido e que fazemos habitualmente dezenas de vezes por ano sem dificuldade,
agora entravamos na verdadeira maratona.
E nada melhor que começar a
recuperar as forças a caminho da Afurada quando o vento volta a ficar pelas
costas e aguardar os aplausos das gentes dessa terra que nunca poupam em apoio
aos atletas que por lá passam.
E, já agora, um “força” muito
especial da Manuela Machado que passou em sentido contrário e nos reconheceu
que bem precisávamos para o difícil retorno para a Ponte D. Luis. O balão
amarelo já ia então a uma distância grande e o vento não abrandava aumentando o
desgaste natural de quem tinha percorrido 30 Km..
Ainda na parte boa, tínhamos
passado pela Rute e pela Érica que seguiam a bom ritmo e com ar de que estavam
prontas a despachar a primeira maratona. O nosso agente infiltrado Paulo Graça,
aguardava nervosamente a Érica na Afurada para a acompanhar clandestinamente
nos últimos 15 km.
Vi o balão amarelo pela última
vez a entrar no Túnel da Ribeira quando ainda saía da ponte em direcção ao
Freixo. Percebi então que as 3.15 h eram um objectivo inatingível e que o
melhor a fazer seria tentar aproximar-me ao máximo desse tempo.
Finalmente atingia o extremo em
direcção ao Freixo e fazia o retorno final rumo ao Parque da Cidade. Só a ideia
de não ter mais vento contrário até à subida da Boavista teve o efeito
psicológico do Red Bull: deu-me asas. Arranquei rumo aos 35 km na Arrábida para
uma parte final de prova sozinho depois de ver se estava tudo bem com o Pedro.
5 – O muro
Está normalmente aos 35 Km. e não
me lembro de ter batido nele no ano passado. Este ano estava imediatamente
antes da Ponte da Arrábida e, não esbarrando, tive de dar um saltinho e
aumentar ligeiramente o esforço.
Foi nesta zona que apareceram
mais caras conhecidas, primeiro o Nuno Azevedo, repetente e o meu único
apoiante o ano passado, e o Carlos Dias a fazer a sua fantástica
foto-reportagem e a dar a força para a fase final.
Apesar de a partir daí sentir algum
cansaço muscular, seguia a um ritmo confortável e sem qualquer tipo de dor. A
certeza de chegar ao final era quase absoluta, embora a partir daqui os
quilómetros começarem a passar mais devagar.
E no entanto, confirmei depois,
estava a seguir a um ritmo perfeitamente estável desde os 30km..
Para combater este cansaço
psicológico socorri-me dos conselhos do Mestre Dean Karnazes (o homem afinal
correu 50 maratonas em 50 dias). Primeiro segui durante vários quilómetros
imediatamente atrás de um atleta de cerca de 1.90 m que corria sensivelmente ao
meu ritmo e me serviu de pacemaker à falta de balões à vista.
Depois já na Avenida Brasil,
cansei-me de ter a visão completamente tapada por uma camisola azul celeste e
deixei-o para trás (as corridas são mesmo assim) e passei a utilizar os pontos
de referência do percurso ou o atleta que seguia à frente. O último, a estátua
no centro da rotunda do Castelo do Queijo (tenho que saber quem é…) parecia
muito mais longe que habitualmente nos muitos treinos que lá faço.
E chegava o troço final da
Avenida da Boavista.
6 – A explosão
Quando efectuava a curva vejo as
camisolas do No Tomorrow vestidas pela Paula e o Ricardo, logo seguidos da Susana,
da Alberta, da Catarina, da Otília e espero não me estar esquecer de ninguém mas
ia a correr muito e há muito tempo.
Eram muitos e bons e com o seu
apoio incondicional tiveram aquele efeito novo de fazer desaparecer o cansaço e
acelerar ao lado do Ricardo como se estivesse a começar a corrida. Lembrei-me
que não era assim quando vi a placa dos 41 Km e já não tinha o Ricardo ao meu
lado e voltei-me a esquecer quando, surpresa, me aparece o Milo para me
acompanhar os últimos 500 m. (seriam 500? A partir daqui foi tudo muito
rápido).
De seguida o túnel de público e a
já conhecida recta final para atingir o objectivo com 3:21:32. Desta vez não
chorei. Fiquei só muito feliz.
7 – O final
De medalha ao peito e com a
merecida cerveja na mão, encontrei quase de imediato a Manuela Machado e
disse-lhe que este ano me fugiu por 6 minutos, mas para o ano não me escapa.
A corrida só acabou quando chegou
o Pedro (que bateu o balão verde das 3:30 à primeira!), a Rute (que ficou em 20.º no seu escalão) e a
Érica que ainda consegui acompanhar na recta final para retribuir, apenas
parcialmente é certo, o que me tinham dado a mim.
Foram momentos de festa (acabou
como começou) em que todo o grupo se juntou e celebrou o facto de mais uma vez
todos terem atingido os seus objectivos e chegado ao fim nas provas em que
participaram (até na caminhada).
A Audrey Pais encarregou-se das
filmagens, o João Pinto, a Paula Lopes, o Carlos Dias e a Alberta Gonçalves das
fotografias para registarem momentos únicos que certamente ficarão gravados
para todo o sempre na nossa memória e nos nossos corações.
Fotos de família, Quenianos
voadores, abraços sentidos, atletas a fazer pose e palhaçadas, fotos de
medalhados, flash interviews, tivemos direito a tudo.
Dizem que não há maratona como a
primeira, eu gostei mais da segunda… porquê?
Porque não corri sozinho!
Obrigado a todos o que o tornaram
possível!
8 –Epílogo
Pensavam que terminava já… ainda não.
As notas breves de uma maratona
são como essa corrida, um bocado longas.
Como puderam ver acima é difícil
resumir em poucas palavras tudo o que se passa durante as 3, 4 ou até 5 horas
que dura a prova. Para os Quenianos talvez seja mais fácil – comecei a correr,
corri, corri, corri e ganhei – já para um corredor casual acontecem muitas
coisas, sentem-se muitas emoções e fica-se com histórias para guardar e contar.
Provavelmente não chegam para
escrever um livro, darão quando muito para escrever umas notas breves mais ou
menos longas.
É uma experiência que recomendo a
todos que gostam de correr e que está ao alcance de todo o corredor casual,
como o provam os quatro elementos dos No Tomorrow e boa parte dos 1680 atletas
que terminaram a Maratona do Porto.
Sem treinador, sem esquemas
rígidos de treino, apenas com alguma disciplina, força de vontade, muita
determinação e uma pequenina, mesmo muito pequenina, dose de loucura.
Quanto à forma de o fazer, é
obviamente possível fazê-lo sozinho, como aconteceu durante os cerca de 7 anos
que ando nesta lides das corridas e o ano passado na preparação da maratona.
Acaba-se a corrida, pega-se no saco de oferta e vai-se para casa.
Todavia, para dar outra dimensão
a esta experiência inesquecível, nada como a dinâmica de grupo com quem podemos
partilhar a alegria do objectivo conseguido ou obter o conforto quando a coisa
corre menos bem. É mais fácil, é mais completo e temos alguém a quem saudar no
final.
Espero que no próximo ano esta
história tenha muito mais que 4 personagens principais, ainda que se sacrifique
a qualidade da reportagem e da equipa de apoio.
NO TOMORROW RUNNING TEAM comecem
a treinar e a correr como se não houvesse amanhã que a grande Manuela Machado
conta connosco junto ao balão amarelo.
E eu gosto de cumprir as minhas
promessas!
Porto, 29 de Outubro de 2012
Paulo Gomes
Dorsal 1923 da Maratona do Porto
P.S. O No Tomorrow Running Team
não é um grupo fechado. Foi criado por um grupo de amigos que resolveram
começar a correr em conjunto.
Tem regras muito simples:
- Cada um vai aos eventos que quer;
- Cada um trata e suporta a sua despesa de inscrição, deslocação, etc. (normalmente com partilha de carros);
- O clube não dá nada a ninguém a não ser a boa disposição, o companheirismo e um grupo divertido para fazer as corridas em conjunto.